Humanos adoram ser ajudados. Faz parte da natureza social humana ajudar e ser ajudado. Mas nessa conta, o ser ajudado tende a ser mais forte, porque o desejo saciado vicia. As ferramentas existem para isso e a tecnologia computacional não fica para trás. Cada aplicativo que instalamos tem um propósito específico e nos ajuda a resolver problemas cotidianos, como ir ao banco ou comprar ingressos de cinema. Mas e quando não há problemas específicos para serem resolvidos? Quando o desejo é sobre uma frivolidade qualquer?
Os tais assistentes domésticos como Alexa e Google Home são pequenos computadores com uma excelente capacidade de interação por voz. Instala-se em algum lugar central da casa, conecta-se o aparelho à Internet e depois, apenas fale com ele. Mas falar o que?
Alexa, cante uma música.
Alexa, me chame em 9 minutos
Alexa, qual é a temperatura em Asmara?
No início é um pouco estranho e todo mundo se sente meio idiota por falar com um aparelho piscante, mas quando se comenta com os amigos e se percebe que todos estão na mesma onda, a sensação melhora. E você realmente passa a curtir sua escrava virtual. Sim, por favor, não ouse dourar essa pílula como fazem os capitalistas: não é assistente, ou secretária, ou colaboradora. É escrava.
Esses aparelhos ficam conectados o tempo todo ouvindo tudo o que acontece ao redor. Faz parte da lógica de funcionamento, certo? Estar pronto para responder aos seus desejos a qualquer momento que você diga “Alexa”. Mas não é como se ele só funcionasse quando você diz Alexa. O monitoramento é permanente. Assim ele capta tudo, registra tudo, armazena tudo e categoriza tudo para ajudar a traçar seu perfil. Além das interação ativas feitas com o comando Alexa, há todo o conjunto de atividades cotidianas que também são capturadas: quanto tempo se dorme, horários de atividade, quando se come, quantas horas por dia se vê TV ou se usa o computador. A inteligência do aparelho é capaz de identificar e catalogar essencialmente todos os sons gerados no ambiente e perfilar as ações e as pessoas de forma individual. Os sons feitos por uma criança, uma jovem, uma mulher e um homem são distintos e portanto seu tratamento é personalizado. Nem mesmo os animais de estimação ficam de fora.
Há quem ainda pense que esse tipo de monitoramento é inocente, feito apenas para ajudar a melhorar as respostas do aparelho aos seus comandos. Mas a realidade é muito mais perigosa. Pense na quantidade de dados coletados por todas as Alexas no mundo todo. O tratamento de todos esses dados permite criar perfilamento sócio-econômico, político, ideológico e religioso com um grau de especificidade nunca antes visto. E uma vez feito esse perfilamento a Amazon consegue oferecer produtos e serviços cada vez mais específicos e certeiros às suas vontades. Mas não apenas produtos, também conteúdo, ou seja, ao responder suas perguntas Alexa o fará com um viés adequado para te moldar à realidade dos fatos que eles, os donos da tecnologia, desejam.
Não é teoria da conspiração, é moldar a Percepção da Subjetividade. É assim que os psicólogos definem o que os humanos chamam de realidade. Ao censurar conteúdo e selecionar informações com um determinado viés moral e político, os buscadores, redes sociais e Alexas moldam, lenta e gradativamente, aquilo que as pessoas entendem como sendo real.
Dessa forma passa a ser perfeitamente aceitável usar a mesma medida para condenar ou aceitar situações iguais, mas em contextos diferentes. Permita-me explicar. O argumento é: “a Venezuela é uma ditadura porque o Presidente, o sr. Nicolás Maduro, foi reeleito 4 vezes e esta no poder faz 10 anos, e é claro que essas eleições são fraudadas porque a alternância de poder é uma prova de democracia. Portanto isso prova que a Venezuela é uma ditadura.” Porém quando se usa a mesma medida, a tal falta de alternância de poder e reeleição continuada na Alemanha, que manteve a sra. Angela Merkel no poder por 16 anos, a percepção é outra. Eu nunca ouvi dizer que a Alemanha fosse uma ditadura, você já?
Apesar da explicação acima muitos continuarão entendendo a realidade é que a Venezuela é uma ditadura e a Alemanha é uma democracia, porque a construção da Percepção da Subjetividade não se dá epenas pelo raciocínio lógico, mas também pelo pensamento coletivo e senso de pertencimento. Todos ao meu redor estão convencidos que a Venezuela é uma ditadura, os jornais dizem que a Venezuela é uma ditadura, o Zap diz que a Venezuela é uma ditadura. Quer confirmar mesmo? pergunta pra Alexa!
O foco na Venezuela ditatorial esta alinhada com outras supostas ditaduras: no Iraque, Afeganistão, Síria, Líbia, Irã e Rússia, só para citar algumas. E além das ditaduras o que todos esses países tem em comum? Enormes reservas de petróleo que não foram colocadas à disposição dos Yankees e da Europa. Então a forma de fazer o mundo aceitar as intervenções militares criminosas e os bloqueios econômicos que submetem os civis à fome e miséria, é convencer o pensamento coletivo que esses são países governados pelo mal, por ameaças à liberdade e à democracia. Afinal a liberdade e a democracia já se estabeleceram como garantias de uma vida melhor para todos e ninguém vai se opor à violência contra quem ameaça essas garantias, correto? Nem tanto.
Dependendo do contexto e da região, a ameaça à liberdade e à democracia poder ser aceitável. Veja os acontecimentos desde o golpe político contra a Dilma, passando pela prisão ilegal de Lula, pelas manifestações dos Bolsominions pedindo intervenção militar e fechamento do STF. Tudo isso sendo feito em nome do combate à corrupção, pela liberdade e pela família. Como pode ser que subitamente, defender o fim do processo democrático e o fechamentos de um dos poderes da república para instaurar uma ditadura militar, seja a favor da liberdade, da democracia e dos “bons costumes”?
Como pode ser que alguém seja pró Bolsonaro e anti Trump? Democrata pedindo intervenção militar? Pró-vida e a favor da liberação do acesso às armas de fogo? Cristão e contra o Bolsa Família? Mulher e pró submissão ao marido? Negro e anti quotas universitárias? Pobre e contra a taxação de grandes fortunas?
A construção desses paradoxos cotidianos foge à lógica e não adianta perguntar para Alexa. Ela dirá que isso é teoria da conspiração, retórica dos comunistas, coisa de “petralha”, que nossa bandeira nunca será vermelha e que o Brasil vai virar uma Venezuela! Honestamente não sei se essas seriam as respostas da Alexa, pois eu não tenho uma para confirmar, mas o mais provável é que a resposta seja moldada para se encaixar exatamente com seu perfil para facilitar a sua aceitação da Percepção da Subjetividade que os verdadeiros senhores da Alexa querem que você tenha.
Não há nada de inocente nas interações com Alexa, nem Google voice, nem Google Home. São maquinas de coleta de dados em massa com objetivo de controle social em escala global. Enquanto Alexa toca a sua música favorita ela escuta qual é seu nível de entusiasmo e te categoriza. Quem sabe na próxima interação para te convencer de que a Terra é plana ela toque essa mesma música de fundo, num volume específico, piscando uma cor que te agrada? Porque como dizia Goebbels, o líder da propaganda nazista, “Uma mentira contada mil vezes , torna-se uma verdade”.
Apesar de tudo, nem a Terra é plana, nem Bolsonaro é democrata, nem Alexa é sua escrava. Muito antes pelo contrário.
P.S. – Asmara é a capital de Eritreia, um pequeno pais da África oriental